Mulheres Indígenas e crises climática: Vulnerabilidades e Contribuições Fundamentais
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Mulheres Indígenas e crises climática: Vulnerabilidades e Contribuições Fundamentais

Por: Karina Melo

A abordagem transversal entre as agendas de mudanças climáticas, conservação ambiental e de gênero foi tratada apenas recentemente na academia e nas políticas públicas. No entanto, durante séculos, as mulheres, principalmente as indígenas, tradicionais e rurais, desempenharam papéis fundamentais na proteção da natureza.

Além de reconhecer sua contribuição para a preservação da biodiversidade, não se deve ignorar que as mulheres são as mais suscetíveis aos impactos das crises climáticas, uma vulnerabilidade que deve ser considerada no desenho e na implementação de iniciativas destinadas à mitigação e adaptação às mudanças climáticas e de promoção da conservação ambiental.

Impactos nas Mulheres das Mudanças Climáticas e da Exploração Predatória de Recursos Naturais

As mulheres enfrentam vários desafios relacionados às mudanças climáticas e à exploração predatória de recursos naturais. Por exemplo, no Hemisfério Sul, as mulheres são as principais fornecedoras de água e alimentos para suas famílias, portanto são as primeiras a sentir as conseqüências da indisponibilidade desses recursos [1].

Além disso, sabe-se que a introdução de empreendimentos de infraestrutura e extrativistas em áreas próximas a territórios indígenas e tradicionais leva a um aumento nos casos de abuso sexual, tráfico de pessoas e outras formas de violência de gênero, sendo mulheres indígenas e negras as mais afetadas [2]. Além disso, aproximadamente 80% dos refugiados climáticos são mulheres, representando 20 milhões de mulheres em um total de 26 milhões de refugiados climáticos em 2009 [3].

Por esses motivos, as mulheres indígenas, tradicionais e rurais constituem um grupo de atenção prioritária na avaliação do impacto de desastres ambientais. Assim, políticas públicas e iniciativas da sociedade civil que pretendam lidar com os crescentes desafios impostos pelas mudanças climáticas devem incluir medidas intersetoriais com viés de gênero, não apenas porque as mulheres são as mais impactadas por esses eventos, mas, principalmente, pelo papel fundamental desempenhado por essas mulheres na conservação da biodiversidade.

Photo Credit: Andressa Zumpano

Importância das Mulheres Indígenas na Conservação da Biodiversidade

Apesar de não ser considerado pela maioria das políticas públicas e programas socioambientais governamentais, sabe-se que “o conhecimento indígena, embora seja novo na ciência climática, há muito tempo é reconhecido como uma fonte importante de informação em áreas como agroflorestas, medicina tradicional, conservação da biodiversidade, gestão comunitária de recursos, avaliação de impacto e preparação e resposta a desastres naturais” [4].

A área habitada por povos indígenas corresponde a 22% da superfície da Terra, e este território abriga 80% da biodiversidade global, protegida há gerações por povos nativos [5]. De fato, as estratégias ancestrais adotadas pelos povos indígenas para monitorar seus territórios provaram ser mais eficazes na conservação da biodiversidade do que o estabelecimento de áreas protegidas [6].

No contexto das estratégias de proteção à natureza que há séculos são implementadas pelos povos originários – e que dependem da demarcação de seus territórios para serem bem-sucedidas, enfatizamos que as mulheres desempenham um papel ainda mais especial na preservação do meio ambiente. Por exemplo, iniciativas como a Rede de Sementes do Xingu [7], composta por mulheres coletoras de sementes na Amazônia brasileira, ilustram como as mulheres lideram as ações responsáveis ​​pela manutenção da biodiversidade e, consequentemente, da segurança alimentar. Este é apenas um exemplo que enfatiza a importância das mulheres na agricultura: nos países do Hemisfério Sul, elas são responsáveis ​​por entre 60% e 80% da produção de alimentos [8]. 

Além disso, nas cosmovisões indígenas, as mulheres mantêm um relacionamento intrínseco com seu território, de modo que, através de suas funções de cuidadoras, curandeiras e guardiãs da água, da biodiversidade e da cultura, elas possuem um profundo Conhecimento Ecológico Tradicional (Traditional Ecological Knowledge – TEK), consolidado como ferramenta indispensável para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas [9]. 

Papéis e Escopos de Ação das Mulheres Indígenas na Conservação Ambiental e na Defesa dos Direitos Indígenas

Existem pelo menos três esferas nas quais as mulheres indígenas agem diretamente em iniciativas que combinam conhecimento tradicional, inovação social e uma abordagem intersetorial a partir de suas próprias perspectivas de gênero para a defesa de seus direitos indígenas, territoriais e do meio ambiente: 1) em suas famílias e comunidades, 2) nos movimentos sociais e 3) na política institucional.

Primeiramente, no nível comunitário, as guardiãs e guerreiras indígenas desempenham um papel decisivo tanto no monitoramento de seus territórios contra invasões ilegais, com participação ativa em grupos de patrulhamento e vigilância territorial, quanto na conscientização sobre a importância da preservação ambiental, atividade promovida de porta a porta nas comunidades dentro e em torno de seus territórios.

Sobre a proteção da natureza promovida pelas mulheres indígenas em seus territórios, Nemonte Nenquimo, líder indígena da Comunidade Waorani de Nemonpare do Equador e membro de Todos os Olhos na Amazônia  através da Aliança Ceibo, destaca:

Nossas culturas antigas sempre viveram em harmonia com a natureza. O papel das mulheres indígenas é muito importante porque somos mães, somos mulheres, temos uma conexão com a terra, com a natureza. Como mulheres indígenas, precisamos da natureza para correr, beber água, fazer artesanato e fazer pinturas com a terra. Portanto, o papel das mulheres indígenas para a vida é muito importante. Sem nosso território, não existiríamos. Nosso papel é muito importante, porque a terra é como a mãe que nos dá comida, que nos dá tudo” [10].

Nemonte Nenquimo

Em segundo lugar, nos movimentos sociais, as mulheres indígenas estão cada vez mais participando das esferas de tomada de decisão, empoderamento com claras repercussões na agenda desses movimentos. No Brasil, dois dos maiores movimentos indígenas nacionais têm mulheres na liderança: Sonia Guajajara é a Coordenadora Executiva de Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e Nara Baré é a primeira mulher a liderar a Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).

Sem dúvida, a presença de mulheres na liderança dessas organizações foi um fator catalisador para a promoção da primeira Marcha das Mulheres Indígenas do Brasil, organizada pela APIB em colaboração com a COIAB em 2019 e que, com o tema “Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito”, reuniu mais de 3.000 mulheres e promoveu debates sobre direitos indígenas e territoriais, violência contra mulheres indígenas e empoderamento de mulheres indígenas, entre outros tópicos.

Photo Credit: Andressa Zumpano

Finalmente, no cenário político institucional, recentemente observamos eleições inéditas de mulheres indígenas nos parlamentos nacionais de vários países da América Latina. Essa representatividade é essencial para garantir que as cosmovisões dos povos indígenas sejam consideradas na formulação de políticas e leis, incluindo a perspectiva e idiossincrasias das mulheres indígenas no debate político nacional e, mais importante, com contribuições de suas próprias experiências e conhecimentos de campo.

Essas parlamentares reconhecem que, para superar o duplo desafio de seus papéis na política – por serem mulheres e indígenas, elas devem promover um trabalho baseado na troca de conhecimentos e em redes. Assim, também em 2019, foi realizada no Peru o primeiro Encontro de Mulheres Indígenas Parlamentares da América Latina, que teve como um de seus eixos temáticos o papel da mulher na proteção dos recursos naturais e dos direitos indígenas e territoriais. 

Na ocasião, a então congressista peruana Tania Pariona apontou: “Pode-se dizer que a violência ambiental não é violência de gênero. Mas, de fato, consiste em violência contra as mulheres, pois são as mulheres quem têm que colocar seus corpos para defender a água, o terra, ar, os recursos naturais, além de também estarem vinculadas à atividade agrícola” [11]. 

Conclusões 

Photo credit: Andressa Zumpano

A formulação, implementação e avaliação de políticas públicas e iniciativas da sociedade civil voltadas à conservação da biodiversidade e à mitigação das mudanças climáticas devem compreender uma abordagem intersetorial de gênero, especialmente focada nas mulheres indígenas, tradicionais e rurais, uma vez que elas são as mais vulneráveis ​​aos efeitos do desmatamento e de atividades extrativistas predatórias. Para serem bem-sucedidos, esses processos devem considerar não apenas os impactos que incidem mais fortemente sobre essas mulheres, mas também precisam fornecer medidas para garantir seu envolvimento informado, ativo e contínuo.

No entanto, a participação das mulheres indígenas nesses espaços não é apenas necessária devido ao maior impacto que elas sofrem em decorrência da abordagem neoliberal e neocolonial que permite a exploração irresponsável dos recursos naturais dentro e próximo de seus territórios. A presença de mulheres indígenas na tomada de decisão de iniciativas socioambientais, sejam do governo ou da sociedade civil, também é crucial, pois essa participação é fundamental à efetividade de ações de proteção da natureza [12].

A relação intrínseca entre as mulheres indígenas e a Terra, uma perspectiva derivada de suas cosmovisões, não deve ser menosprezada e é imperativo que seus conhecimentos tradicionais, considerados apenas recentemente pela ciência climática, sejam progressivamente incorporados às políticas públicas e iniciativas da sociedade civil como uma eficiente estratégia para a proteção da natureza com um enfoque em direitos.


Referências

UNFPAState of the World Population 2009: Facing a Changing World, Women, Population and Climate. 2009.

Women’s Earth AllianceViolence on the Land, Violence on Our Bodies. 2016.

Women’s Environmental Network. Gender and the Climate Change Agenda: The Impacts of Climate Change on Women and Public Policy. 2010

Raygorodetsky, Gleb. Why Traditional Knowledge Holds the Key to Climate Change. 2011.

World Bank. The Role of Indigenous Peoples in Biodiversity Conservation. 2008.

Rights and Resources InitiativeCornered by Protected Areas: Replacing ‘Fortress’ Conservation with Rights-based Approaches Helps Bring Justice for Indigenous Peoples and Local Communities, Reduces Conflict, and Enables Cost-effective Conservation and Climate Action. 2018.

Marimon, Alessandra SchwantesForest sowing women: the communication processes of women collectors in the Xingu Seed Network. 2018.

UN Food & Agricultural OrganizationWomen and Sustainable Food Security.

IUCNTraditional knowledge key to conserving biodiversity. 2010.

Nenquimo, NemonteEntrevista a Hivos durante a primeira Marcha das Mulheres Indígenas do Brasil2019.

Demirdjian, StephaniePrimer Encuentro de Parlamentarias Indígenas de América Latina puso el foco en “la lucha contra las violencias”. 2019.

Agarwal, Bina. Does Women’s Proportional Strength Affect their Participation? Governing Local Forests in South Asia. 2010.